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Pré-estréia

Estréias, que pena, são únicas.

Como o primeiro choro.

O primeiro passo.

O primeiro beijo.

A primeira dança.

O primeiro amor.

O primeiro filho.

Quem dera eu estreasse todos os dias.

Como se todos os nasceres do sol fossem os primeiros.

Como se todos os fins de tarde fossem únicos.

Como se a lua crescesse sempre nova, toda cheia e nunca minguasse.

Como se houvesse sempre a primeira estrela para o primeiro pedido.

Como se a música do seu “eu te amo” fosse sempre uma surpresa.

Como se andar fosse um exercício consciente.

Como se existisse sempre o primeiro gole mas nunca a gota d’água.

Como se toda onda tivesse um primeiro pulo.

Como se, eternamente, eu afundasse e emergisse nesse oceano que é a vida.

Relembrando o útero e a minha primeira estréia.

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Sobre fertilizantes e desarmamento

Um corpo fino, com ombros e cabeça pendentes, como uma flor que já perdeu o viço. O homem parecia que havia murchado. O quadril pronunciado para frente servia de apoio para as mãos pousadas na cintura, fazendo com que os braços lembrassem folhas saindo de um caule magro.

Se lembrasse apenas uma flor, seria poético. Mas era áspero como um filme de bang-bang no deserto. E que flor nasce em areias escaldantes? Poderia, no máximo, ser um cacto se melhorasse a postura. Espinhos já tinha. Mas projetar, daquele jeito, o quadril para frente dava mais a impressão de que sacaria uma arma.

Assim como os caipiras pistoleiros, sempre fazia cara de intimação. Olhava as pessoas de cima, porque mesmo murcho era alto e conseguia ver o topo de suas cabeças. E aquilo o fazia crescer, ainda que curvado. Ver o cocuruto de toda a gente era um poder inexplicável. Era como ser um girassol perto de marias-sem-vergonha, ele que não tinha vergonha de nada.

Não se importava de ser mal-encarado como um atirador da velha Hollywood. Tampouco percebia que era como um solo infértil. Os espinhos nunca deixaram um beija-flor se aproximar. E assim acabou se acostumando com seu deserto particular e, embora se considerasse um girassol, só olhava de cima para baixo, nunca o contrário. O que ele não sabia era que as flores, com o tempo, ficam despetaladas. Inevitavelmente, mostram ao mundo o seu miolo. A seiva deixa de percorrer seu corpo e elas ficam cada vez mais vulneráveis, como um bandido de bang-bang que se distrai e leva um tiro.

Um dia o vento sopra e leva a última pétala. Qualquer dia, o mocinho aperta o gatilho e gasta sua última bala. Daqui a pouco o beija-flor se aproxima da falta de espinhos. Ele pensa que perdeu seu escudo. Mas vejam: está, apenas, desarmado.

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Liqüidação

No liqüidificador da vida, a água vem em onda, marola, redemoinho. Sempre líqüida. Nos deixa em estado de ebulição, de fervor, de gelo no vapor. Inunda a sala, o quarto e entra no sapato. Encrespa o cabelo, cola a roupa e faz bolha. Embaça o espelho. Deixa o caminho escorregadio. Sempre líqüida. Carrega o milagre no esperma. Esvai a esperança na menstruação. Destila a tristeza e a alegria incontida na lágrima. Degusta, na saliva, os (dis)sabores da estrada. Expulsa o mal pela urina. Corre a vida pelo sangue. Sempre líqüida.

Não seque a água. Ou tudo estará liqüidado.

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