Arquivo da categoria: Uncategorized

Lacuna

Dois lápis apontados, três canetas, uma borracha. Tic-tac. Uma ida ao banheiro, um pulo na cozinha. Tic-tac. Um biscoito mordido, meio copo de suco. Tic-tac. Um piso frio, dois pés sem meias. Tic-tac. Uma janela embaçada, muita chuva lá fora. Tic-tac. Um tapete velho, nenhum cão à vista. Tic-tac. Óculos sujos, uma flanela perdida. Tic-tac. Um jornal ao pé da porta, isso nem é notícia. Tic-tac. Noite em claro, madrugada escura. Tic-tac. Um desespero abeirando, um dever esperando. Tic-tac. Ponta quebrada, caneta sem carga, borracha que borra. O tempo que passa, o cérebro que não engata, a mente desabitada, a insônia desperdiçada. Uma folha em branco. Tic-tac-tic-tac-tic-tac. Bloqueio de escritor.

6 Comentários

Arquivado em Uncategorized

Oração à alma

Tira de dentro a discórdia que o homem plantou. Arranca o que ele criou e em mim semeou. Não quero saber vingada mais nenhuma semente desse quinhão. Essa cor vermelha só se for do meu sangue imaculado. Deixa longe de mim o rubro das baixas profundezas, larga a chama trépida e a forquilha cínica. Penetra em mim um espírito anil resplandescente e embebe os que me seguem. Ilumina a mais íntima percepção e faz hoje o que não fiz por mim nunca. Deixa de lado a desonra e o injúrio. Viola apenas os limites da boa fortuna. Eleva a mente, que o espírito é puro. Sê menos palavras e mais sentimentos. Olha para dentro e chora para fora. Sublima com as lágrimas e abranda com um sorriso. Aceita a temperança, o perdão e esta oração. Que eu não quero ser Ele, mas sim para Ele.

3 Comentários

Arquivado em Uncategorized

Pré-história

Minha tão querida L.,

Você ainda não existe para o mundo e ainda não sei ao certo quanto lhe falta para chegar. A minha certeza é que não precisei de nove meses para conceber e parir a idéia de você. Sei que a L. do meu imaginário é apenas um rascunho. A L. obra-de-arte-de-Deus será muito mais divina, com direito a essa redundância.

Por enquanto, o seu formato etéreo me faz imaginá-la entre as estrelas mais distantes; ao mesmo tempo a sinto concreta, como se já no ventre estivesse. Já posso pensar no que será e como será quando nos encontrarmos de fato. Já penso nos primeiros passos, nas segundas palavras, nas terceiras brigas, nas quartas pazes, nas quintas comemorações, nas sextas musicais e no sábado ensolarado. Domingo descanseramos ao luar.

Entendo que você não é só minha. Mas somente meu escudo lhe abrigará e sou egoísta. Por vezes não lembro da colaboração alheia na construção do seu ser. O que não significa que minha gratidão a ele não é eterna – de que outro modo poderia eu usufruir de sua existência? Ao meu lado, o alheio também aproveitará: essa sua maior recompensa.

Imagino você agora, querida L., com as pernas balançando e escutando meus devaneios. Sussurrando no meu ouvido que a pressa não se faz necessária. Você chegará, seja quando for. Está reservada na melhor e mais alta prateleira, onde só eu posso alcançar. Gosto de pensar assim, mas o fato é que é você quem me alcança. Aqui nessa Terra descerá; eu é que não posso subir até você.

L., você é tão maior que eu! Mas seu começo será tão pequeno que caberá nos meus braços. Sua presença já me é tão forte! Mas a fragilidade do seu choro exigirá todos os meus cuidados. E quando finalmente você alcançar meu tamanho, eu é que diminuirei e me aninharei no seu colo, procurando alento na sua experiência jovial.

L., querida, não se demore. Sua própria existência clama por você. E de você, a minha já é dependente.

3 Comentários

Arquivado em Uncategorized